24 de janeiro de 2008

A agonia do poeta e a dor da prostituta

Tenho pensado na semelhança entre estas duas profissões.
Já faz tempo, me incomoda o fato de o poeta não ser dono de sua obra. o que ele escreve deixa de ser dele neste momento. Embora seja um pedaço do seu ser que saltou de suas profundezas. Um poema é parte, pedaço de quem o escreveu.

Pense no significado do texto. Pense na fonte de inspiração. São coisas tão íntimas do poeta; coisas que só ele conhece e, quando as recorda, sua alma pulsa dentro do peito. Nem mesmo o significado e a inspiração têm o mesmo sentido quando sua obra for lida por alguém. será alguém que a lerá. Portanto, será uma nova obra. O que “os Lusíadas” mobiliza em você é único. Só você sabe. E isso já deixou de ser ‘propriedade’ de Camões desde que o primeiro leitor sentiu algo ao relacionar-se com o texto. O corpo de uma poesia é de quem a possui. Não é mais do autor.

Diz Jung: "Toda Casa tem um espírito. se o teu espírito não bate com o espírito da casa. Esta não é uma casa para o teu espírito".

Assim, se o espírito do leitor não se coadunar com o espírito do poeta, aquela obra não fará sentido nenhum para o leitor. Não o fará sentir. Na verdade, nem mesmo terá sido lida de fato. Portanto não será "possuída", ou "violada". Não se tornará corpo no seu corpo, ser no seu ser. Não será uma fala para o seu espírito.

Se, todavia, o leitor/amante encontrar algo que esteja dentro de seu ser refletido no papel e que no momento da leitura vem à tona, então está sacramentada a violência, o roubo. Mesmo sem ele saber que é assim - porque o que faz uma leitura ser bela não é a formulação literária é, antes, a revelação de verdades interiores. Verdades do ser de quem lê. Verdades que partiram do ser de quem escreveu. Coisas que o nosso ser gostaria de ter nos dito e não encontrou palavras, e as palavras (agora nossas) se encontram ali no papel, na nossa frente. Acho que é por isso que os dramas e as tragédias sempre tocam profundo em nós. Ninguém se encanta ou lembra-se com facilidade de uma telenovela campeã de audiência. Mas todos revivem experiências inéditas ao impactar-se com o amor e a morte de Romeu e Julieta. Talvez seja porque a experiência de amar tenha para o nosso ser o sentido mais escuro e profundo de morrer pelo outro. Amar é escolher. Escolher é não escolher tudo o mais. É morrer para outras possibilidades. Aurélio nos dá o significado de Agonia: iminência de morte. O poeta é alguém que faz nascer sua produção e a faz morrer ao mesmo tempo. Quando fala de amor vive a experiência da morte. Fala de algo que penetrará outros seres que não ele. Seu amor sobreviverá. Mas para si morrerá.

Aqui, o que poeta escreveu deixa de ser dele e passa ser propriedade
exclusiva de quem estiver "fazendo amor" com suas palavras/entranhas. Neste momento a inspiração e significado (emoções) são outros. Não mais as do poeta mas de quem lê. Pronto. Está entregue um pedaço [da alma] do escritor àquele que se deleita e têm seu momento de gozo com ele. Pois fazer poesia é isto:
entregar um pedaço de você para que outros (muitos outros) tenham prazer com isso. E o poeta [a poesia] fica ali inerte esperando que os outros cheguem ao êxtase.

Fernando Pessoa diz que poesia não é inspiração, é trabalho, transpiração. Já tentou escrever um poema? Viu como é difícil? É assim: de repente você tem um lampejo de inspiração e arrisca colocá-lo no papel ou na tela do computador; depois de algumas tentativas , é comum pensarmos que aquilo que poderia transformar-se em pérola não passava de pedra bruta. É bobagem, a gente pensa: “deixa pra lá!” A tentativa de traduzir o sopro das profundezas da alma que ventilaram sua mente naquele instante, torna-se cada vez mais difícil. O prazer é invadido pelo trabalho, pelo dever de arrumar as coisas, as letras, a rima, a métrica etc. Trabalho não combina com prazer. Ou se tem prazer ou se trabalha. Ou será sem propósito que os escritos sagrados mais antigos atribuem ao trabalho o grau de penitência ao pecado. “Do suor do teu corpo comerás o pão”.

Então, o que dizer mais acerca da prostituta? Estamos falando de inspiração, prazer, ou trabalho? Certamente, trata-se de uma produção passível de muitas ‘leituras’. Há quem possa conceber a leitura do prazer. Outras ainda são possíveis. Fuga. Asco. Agonia. Mas e da parte dela, que oferece o corpo por trabalho? Que parte do ser está no corpo? Qual ser esta sendo dado para preencher o ser do outro?

Na poesia e nesta profissão, que é pelo senso comum, a mais antiga, trabalho e prazer confundem-se. Ser e não-ser. Vida e morte. Agonia e dor. Inspiração e obrigação confrontam-se numa luta tal que não se sabe ao certo quem ganha ou perde. Suas produções nos levam a, pelo menos, uma fatídica conclusão: a dor da alma de um provoca prazer e delírio no outro.

Marcelo Coelho Almeida
Escrito em agosto de 2000

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